segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Auto-Estrada

AUTO-ESTRADA
Para a Babalith


Vintage Woman (Steampunk Version) - Itkupilli



Deslocavas a tua cilindrada
Ás ruínas, que sabias que eu amava,
E amavas saber que tudo o que não era de ninguém
Fosse teu, e sentir disso a aura
Dos ventos, das noites, do hoje.

Falavas e enganavas-te
Com graça tamanha que eu estivesse convencido
Que estavas certa, acima da gramática, ou da razão,
Porque a graça que te habitava, estas coisas
Vinha também habitar e sedutoramente mentir.

Olhavas-me muito fundo e procuravas em mim
Um lugar que não existisses, forçando esse lugar
A reconhecer que existisses. “André,
Nada te limita, mas tudo o que aos outros limitará
A ti mesmo te apresentará, como uma mancha que alastra
Como esta noite de vento e estrelas”.

E eu devolvo-te por isso a minha compreensão
Dos crisântemos de cores caídas para os olhos
Do Outono solar e triste, as linhas férreas, saber que
Tudo isso é hoje as casas brancas se sobreporem
Apinhando-se umas às outras, com medo tanto
Do deserto, que se tornam nisso mesmo que temem:
Um deserto. Cobrir tão totalmente a planície
Que a perdendo de vista, se totalmente esquecessem
Na planície.

Oh, eu, que te conheço a estranheza, como quem diz
Te conhecer a história, sei que gostavas de causar à família
Uma aflição da qual fosses indiferente, que impuseste sempre
A tua estranheza de viver, para que nada da vida possa
Ser estranho à vida, e te tentaste um par de vezes
Suicídio, mas eles não sabiam, que a tua filosofia fora sempre
Maior que a minha, mais axiomática e antiga,
Breve e evidente: raiavas sobre o mundo e destruías-lhe
Todos os máximos, todos os mínimos, e ele tornava-se
Finalmente mundo: iluminação, desamparo de Outono,
Um baile de campos, do destino para o deserto
Da estrada, o absoluto da destruição acima da pequena
E insegura compensação, sonho, acto, gesto, espectro
De uma azinheira, chuvas, terras escuras,
Porque a minha poesia procura evadir-se, e a tua despir-se.

Aqui, os espectros de um e de outro homem, ou da azinheira
Escorrem pelos fios de Sol que a estrada sobe pelo céu
Azul e vasto onde o Verão não cessa, mas a gelar
Tu desces, e tudo se faz festa.


André Consciência

domingo, 29 de dezembro de 2013

Arranha Céus


Skyscrapers of Shinjuku and Mount Fuji - Morio

Um casarão vive vasto na minha mãe
E a minha terra vai só,
Depois, o inicio dos olhos é uma raiva
Que busca a visita da música irredutível
Minha presença no mundo,
Electricidade estática que empresta a montanha
O pinheiro e a pedra.

Não há estrondo maior, do que o de alguém
A fechar os olhos, e a minha terra
Tem a idade da música, os seus homens
A idade do destino, aqui as eras
São consumidas pelos olhos, até a solidão cantar
E vir às portas pedir esmola, porque o fogo é o que
Da terra, mais está perto da não-terra.

O silêncio das fragas morre ao longe
No coro, e a montanha avança para mim.



André Consciência

Canoas do Tejo


Botes em Descanso (Praia do Rosário) - José Rodrigues


Há os que dizem que a emoção não tem razão
Nem a razão é nutrida de emoção.
Outros, cujos sentidos, um pouco entorpecidos,
Afirmam não haver paz ou paixão,
Apenas mundo e movimentação.

Eu sinto, olho, e minto para dar nome
Ao que não tem nome e sinto.
Esta é a verdade, que transcende,
E em qualquer coisa aquele que sente
É uma cidade de coisas e de gente.


André Consciência

sábado, 28 de dezembro de 2013

Fêmur de Loba


Beauty and the Beast - Annie Leibovitz

I
Um dos lados do seu pescoço comia.

As pessoas não eram feitas desta brancura
Nem a areia fina tem forma.

Na pista, vindo da escuridão
Restolhava um mar de saias.
Partia as palavras e fazia-as respirar.
Deixou cair os braços do condutor da camioneta.
Não sabia.

Enfim, chegaram os lobos.


II
A terra pisou o centro da noite
Um sobreiro parou debaixo dela,
França.

A mulher tentava falar mas não se entendia o que dizia:
“Qualquer coisa”. A terra macia e as pedras separavam os tojos
Desfaziam as veredas. As mulheres e os homens eram seguidos
Por caudas, ao tropeçar, e quando tropeçavam batiam
Nas costas outras, a abrir asas deformadas. Tinham o que viam
A calcar a grandeza do céu negro e grande. O caminho sabia
Enfiar-se no homem que conduzira a camioneta e só
Ela levantava-se diante dos rostos
A cabeça dos outros mergulhava
Como que para dentro de um vidro, na sua voz,
“Qualquer coisa” , a felicidade fazia promessas, com grilos
No arrastar dos passos.

É o pensamento que faz nascer a ausência.
Desconsolada, a noite olhou para dentro dela
E recusou-lhe um pedaço, muitos pedaços,
Três pedaços, a olhar para os homens
Cortou-os como lascas de pão, abraçou o chão
E deixou as suas malas de lado.
Um ribeiro simples passava,
Um fio de água foi sentar-se com ela.

Tudo aconteceu quando descansaram para parar.
Ficou duas horas a subir e descer os cabelos.


Horned Wolf

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Três Cantigas




Há mar infindo sem vida
Na escuridão um trono
De três mães, a cor obsidia.

Lembra-nos aquele que vinha
A luz que as ilumina
Messias que não vem.

Ó sangue do nosso povo
Que derramastes a fruir
Onde está o nosso louco
Destino não mais a cumprir?

(A da esquerda, bailando em roda
E muito queda)

Ouve ninfa!, que o mundo volteia:
Tudo será de nossa mui nobre ceia
Se a voz que te traz na candeia
Louvar ao céu um final de epopeia.

(A da direita, clareando a água
Da sua garganta ampla e estreita)

A sombra da vitória: eis ao que chamam
De História. Se o meu canto é solene
Sombrio, lúgubre, perene, lembra-te
Da memória, não há fim ao nosso ser
Nem inicio, no eterno amanhecer.

O trono parou, e as três
Imóveis, a fitar
Para onde, não acaba nunca
A gente acabar.


André Consciência

domingo, 22 de dezembro de 2013

Eufemenismos

Pan & Maid - Judith Page



Escuta o barulho do céu a passar pela casa,
O som do céu a passar pelos nossos corpos não será diferente.

A esponja de Alá lavou a Lua da abobada,
E isso aumentou a sombra dos homens e a sede.
De súbito, a quinta cobriu-se de rapinas esfomeadas
Cobriram os telhados e as folhas e as fontes e bicavam,
Ainda vivas, as dobras das janelas.

Alda, a minha filha, Alda, distante,
Como se sonhasse uma corte de amor no extremo oriente.
Vários homens desapareciam por debaixo da sua saia,
Como se apagados de manhã, sonhos.
A sua fragilidade a quebrar-lhes pescoços.
As suas mãos brancas sem ostentar sangue pisado nem mágoa.

A vontade de um homem não pode ser controlada por esse próprio homem,
E na bestialidade masculina lia Alda uma chuva miúda de alvorada
A limpar as varandas com perfume branco de flor.


André Consciência

YH VH - A cidade irreal num cerco à terra

Judith Page - Kether



Ponho um disco no aparelho, e do centro da música
Arranco à socapa as flores, talheres, lâmpadas, móveis,
Pratos de sopa, copos de cristal, exposições de arte
E fios de aço. Nisto é que um homem lhe resta
Estar lúcido, e se nele raiou algum vislumbre
Do que é o futuro: a presença de nós próprios
Como alarme do sonho, a interrogação submersa
Na intimidade, como se não escrevesse aqui,
Porque deixou de haver pedra e cardos,
E jazemos dentro das pedras e dos cardos.


André Consciência

sábado, 21 de dezembro de 2013

Transfiguração Poética




dedicado a Luiza Nilo Nunes


I

Lançou a candeia a nascente e uivou
De seguida, a Sul, acenderam-se fogos que apagaram a sua candeia,
tudo a deslizar pelo poente.

Encheu-se de caminhos enquanto o mundo a seu redor se vedava.
Conseguia ver nos crânios os homens de espírito.
Esquecia-se neles.


II

Descendentemente, as pastagens de gado
Cheias de água do rio Mouro
Agarradas aos seus pés como um sonho.

Descansou no dólmen,
Os seus falecidos deitaram-se nele,
com palavras brandas.

O seu coração explodiu,
espantando um aglomerado de moscas.



III


Sonhava que tudo estava no seu crânio: sonhava
Ter pele na luz e por conseguinte no movimento.

Por exemplo, nenhum buraco somente um buraco,
Todos os buracos a ser centopeias conscientes de si próprias.

É a razão irracional do quilópode que o permite movimentar-se,
A sua racionalidade é, por isso, um buraco,
E a partir deste buraco arrancou do sistema nervoso o gnomo negro
Que é um lagarto: as escamas uma luz de tochas no vinho à deriva,
Palavra a escorrer das estrelas.

O corpo réptil cintilava com deslizes suaves pelo Sol,
Três dias seguidos, encontraram-na em forma rochosa,
Enquanto encimava o penhasco de Portela do Lagarto.


André Consciência

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

as ideias mais altas alteram o aspecto da nossa terra




Não escaves dentro das pedras
Os corpos dos anjos
Se sentes a serenidade de te ter
Por toda a parte
E eternamente intima a origem
Da Perfeição e das ruas,
E dos anjos...

Outra coisa
As bermas de cinco mil labaredas
Pelos meus campos de Concentração
Ou o "si mesmo" no fim dos
Objectos.

Envolta do Sol o céu é um único som
E a mudança faz todas as crianças
Poderem reinventar-se no chão.


André Consciência

A savage struggle between heaven and things.



Para começar, é uma sombra e atmosfera mais os olhos.

De súbito, endireitou-se, muito 
orgulhosa, muito orgulhosa dos seus 
desígnios, manter o ritmo inicialmente 
estipulado e a esfinge da morte.

As crianças brincam, nadando com a injustiça
Deus espantou-se, com claros peitos de neve 
E derreteu um pano molhado agitado 
Pela tempestade:
Um corpo que falta e que demos às Estátuas. 

Ó soltura das suas necessidades, angústias paradas! 
No relvado enevoado figuras de pedra basilar 
Todos os poetas são loucos são loucos
Porque a aliança que é suprema absorve 
A natureza voluptuosa. 
Mas eu desci com mil cheiros de incenso 
E penetrei-a até à Casa.

André Consciência


NOMES, O Homem


"Criança geopolítica assistindo ao nascimento do Homem Novo" de DALI



Desembocámos num rio com o Deus que corrói.
A massa negra desperta e voa
Reúne todas as graças
A própria beleza o determina:
Para votares tens de estar nu.

A sombra cada dia tira ideias análogas por uma dor antiga
Os flocos pousam nos cedros, dois peitos de neve derretem,
A trovoada começou, próxima, e nós deambulávamos
Desconsoladamente sobre uma aldeia coberta de branco.

Mas é preciso conhecer os felinos
Gastar a luz do céu
Os esvoaçantes grãos de mim.

Tudo o que existe, existe
E na vida, nunca soubemos agir
Com um sangue incorruptível,
Um dia todos nos esquecemos...


André Consciência

sábado, 24 de agosto de 2013

O Braseiro

Kevin Rolly


Tens no teu silêncio
As aves albinas a desdenhar o sangue
As noites em que nos sentamos
A iluminar as cidades e as cascatas
Nas fontes
De olhos brancos como a memória

As mãos petrificadas pelo olhar
Que gostariam um dia de se dar
Vêem agora as crianças na fome
Arquearem-se para a morte

Um deserto abre-se contra a carne
Na amnésia das almas
Mas vês-me ainda sob a lua
A brilhar sobre um piano.


André Consciência

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Durante O Dia

Du Arte - Babalith



Sentado
Á janela
Espero que tu
Em corridinha venhas a passar
Ondulante com o uniforme crucifixo
A lembrares-me de mim próprio
Talvez (divago sem certeza)
Te pudesse confortar
Eu amo os sulcos dos teus olhos
E os furores de ansiedade
Sobre a tua expressão cerrada
O rosto por vir
A face sem experiência objectiva
E escolheste o trilho do músculo
Contra a dor
Quão intimo és
Nas mentes de todos
E eu saúdo-te
Corajoso espírito
Que tanto ingeriu
Tão pouco desfrutando.


Leonard Cohen traduzido por André Consciência

sexta-feira, 24 de maio de 2013

A Rapariga Na Escuridão


Colette Saint Yves





Era uma rapariga delicada
E estava nua com pequenos seios hirtos
E coxas redondas, numa mão
Um raminho de lírios,
Uma espada curta na escuridão fria
Da extinção das chamas a resplandecer
Com o seu rosto obscurecido voltado
Para as pedras, os seus passos
Perdidos no seu próprio sonho
Materializada no primeiro degrau
Da arcada, orlada pelos cabelos
Onde luziam raios de luz
Apontando delicadamente os dedos
Dos pés enquanto pisava.

Um sinal dos deuses, luz
Na escuridão, beleza
Entre os despojos.


André Consciência

terça-feira, 14 de maio de 2013

Andraste





Numa madrugada gelada e cinzenta
Lutaremos contra o mundo
Sairemos em fila da luz das fogueiras
Para a escuridão
Atravessaremos prados cobertos de erva
Chão empapado, escuridão e chuva
Pesada e persistente, fria e mordaz
Que pinga para dentro
Sem uma estrela para nos guiar
Ou Lua para iluminar o caminho
Cada um com um único olho
Conseguindo ver o rio a reluzir
No vale, cheio de sonhos e ilusões
Como fantasmas na madrugada
Alados pelo medo
E os redemoinhos escuros arrastarão
Dois cisnes pela corrente.


André Consciência

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Fornalhas dos Ferreiros




Olhos postos nos pântanos varridos
Nas grandes e descoradas ondas de chuva
Os dois por entre o torrencial
Até ao cume, regressávamos a casa
E descíamos como tolos os caminhos
Do destino, sem falar,
Com a cabeça descoberta sob as estrelas
E as sombras da noite estendiam-se longas
Escuras, pela terra coberta de erva mortiça
Será que os deuses precisam de homens?
Ou somos como cães a ladrar para chamar os donos
Que não querem ouvir?
O caos vencido pelos poderes do mistério,
O dia dava lugar ao crepúsculo no chão
Musgoso por baixo da sombra do carvalho
Enquanto a mente se afundava nas trevas.


André Consciência

domingo, 12 de maio de 2013

Pasto Para As Gaivotas







Na conclusão da lei do livro
E da música da justiça
Homens fumarentos
Planearão com a fogueira
Matar o dia seguinte.

O bem viverá longe
A Oeste, onde as águas
Se agitam sem parar.

Os gritos das raparigas
Serão gaivotas a piar no mar
E o lamento da criança
Dois poetas a discutir
A causa de alguma metáfora.

O deserto e os campos
Entupirão de mato
Zarparemos vazios
Rumo ao Norte

E numa ilha as mulheres
Beijadas pelo vento
Aplaudirão esperançadas
Um caracol.


André Consciência

sábado, 11 de maio de 2013

Casa Real





Dêem-me edifícios romanos
Um pomar, um lago e um jardim,
Um pátio onde harpistas
Tocarão um céu sem fim

Mas carregarei jarros de vinho
A regatos secretos
Numa clareira escondida
De candeias em salgueiros
E a minha paixão por ti
Dilacerará a terra.

Levar-te-ei sozinha
A um vale tão profundo
Que mesmo ao fim da tarde
A geada da manhã
Ainda cubra a erva.


André Consciência

sábado, 4 de maio de 2013

Evocação À Lua




A geada estalava debaixo dos nossos pés e estava muito frio nas folhas castanhas. O céu cinzento tinha a mesma cor acre e amarelada da espada, enquanto o Inverno repousava taciturnamente escuro na erva. O céu está vazio e o fumo mantém-se rente ao chão. Nenhum de nós era maior do que uma criança dobrada mesmo no centro, cinzenta e lisa. Rezámos uma oração e em seguida o rei menino foi exibido à volta da parte exterior das coisas. Depois, voltá-mo-lo contra o Sol. Uma criança colocou uma rosa em frente dele, e a espada partiu a pedra. Pelo portão, via-se cair uma saraiva gelada, e uma lufada de vento fez que vergastasse o espesso colmo do telhado e agitasse as chamas, as nuvens afastaram-se e revelaram um brilho por entre o tremeluzir das estrelas. "Sim, minha senhora", disse, e olhei com ela para a interminável extensão de planície à nossa frente.


Horned Wolf

quinta-feira, 2 de maio de 2013

O'diamar




Odiar-te,
Se a noite entra para nós
E a miragem no suspiro
Porque a língua da chama
Limpa e reclama
O seu ciclo venenoso.

Amar-te,
afastar-te de mãos leves e braços caídos
como amantes de livros velhos
esquecidos em clavículas arranhadas
pelo sabor do suor que te escorre pelo corpo
em viagens desesperadas.

Comprimidos no desejo
Da madrugada passageira
Loucos na solidão
Da brasa altaneira
Famintos canibais
Sem confessar que o somos
Ou se acabamos e o cais.


André Consciência & Daniela Sophia
Adaptado do blogue Poisoned Dreams

Anel de Amor

A Vida É Um Breve Sonho - Arnold Böcklin




Era uma mulher de rosto fino
Cabelo tingido de vermelho-ferrugem
Esbelta negro e afável
Com um pesado cinto de lontra
Pele de prata e ouro
Reluzente pulso e pescoço.

Um grito feminino rasgou a noite
E atravessou velhos edifícios
E alcançou a ilha dos mortos.

Foi nessa altura que cresceu a minha primeira barba.


Horned Wolf

Malak XIII


Malak Al Mawt - PriestofTerror



Meio-dia mergulhou no verde a Sul. O grande bosque amortecia as nossas asas. De vez em quando ouvia-se um pombo fazer barulho por entre as folhas, o matraquear de um pica-pau num tronco de árvore, uma mulher que lavava a roupa na casa dos espíritos da água. Ouviam-se também as flores a salpicar as pastagens. Mas as nossas asas, o grande bosque amortecia. Um veado saiu a correr do bosque e apareceu no limiar do arvoredo. Ouviu-se uma corneta. Lá ao longe, outra corneta, depois o zumbido das abelhas no rio. O fumo infestou a tarde, a morte infestou o reino, não para nele viver e proliferar, mas para o matar. Chegara a idade em que os tronos nada mais eram do que cadeiras e as terras vazias, impossíveis de ocupar, não cessavam ainda assim de convidar as lanças. A Sul do rio bois castrados deslocavam-se pesadamente, como se nos vissem, e para os ver, veio o rosto de um homem. Cobri-o de cicatrizes, abri-lhe a boca, os dentes amarelados. E à nossa volta o bosque verde estava quente e esbaforido e eu conseguia sentir o cheiro do homem, do suor que escorria para os seus olhos enquanto o terror gritava. A alegria e o medo são exactamente a mesma coisa e a alegria é para quem age. Vi o sangue avivar o dia e o pescoço tornar-se madeira podre. Alto nos ramos das árvores, um pássaro piou, e as nossas sombras espalharam-se à nossa frente e a erva foi comida, com as margaridas, com as centáureas azuis, as tasneiras.  


André Consciência

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cães Vadios





O Oeste caia numa chuva miudinha e iluminava as tochas apagadas da escadaria. A praça era de vento batido, e brilhava. No meu centro alguém desatou a rir, a vibrar pelos telhados, a ecoar no céu louco e furioso. Deixei-me cair nas pedras, uma coisa sem forma e a tremer. Na verdade os tronos nada mais eram do que cadeiras. 

Horned Wolf

Snuff





I

O silêncio da estrada
E os teus pés denegridos
Pelo marchar das horas
Quando o Sol ilumina
As fissuras na montra
Do teu coração.

Lua. Morta na pedra. As palmeiras a esvoaçar o azul escuro. O sangue das nossas mãos. O sangue. Das nossas mãos.



II

Agora não há nada que te prenda aqui. Disse a rapariga de branco. Ela pensa que te moves dentro das suas pálpebras. O ar mudou. De repente já não escrevia. O banco contra o sol morno da carcaça daquele dia convidava-nos a sentar. O amarelo espalhava-se por tudo, tórrido e mudo. O inchaço dos teus olhos. Contra o ar de chumbo entre nós. Não há clarão nos dias tempestivos que não seja tenebroso. O peito do homem caia aos trambolhões pelo precipício da sua desalmada inclinação. Não tentes olhar para mim antes do dia acabar.

III

A carne viva. A febre. A tontura. Ofegante. Ofegante. A arranhar-se contra as paredes de si. A tontura liberta contra tudo. Perdeu a memória. Disse. O taxi. Perdi a memória. Os olhos lançados contra o lamaçal poeirento do tempo ausente. A mão suada e rigida como a de um peixe morto no gelo da eternidade apodrecida. A testa a ferver com os desvarios da origem. O banco afunda-se para dentro de nós e quebra-nos os ossos. Há um adeus nas carnes a soldo. Tudo era um peixe e o seu olhar vidrado quando olhavas. Tudo era água fria. "Devias beber mais água", dizia nua a meio do oceano infindo, sem costa, inútil, insólito. Tudo inútil.


IV

As plantas. O caminho de terra móvel parada. O vento claro e ofuscante. O sol tímido e afogado. A tua figura recortada e primordial. As pernas grandes e chamativas, como a cauda dos peixes-homem. O cabelo de algas. Achavas provavelmente que eu não sabia o que era estar morto a só existir letras. Ah, mas as minhas personagens a cruzar para este mundo sem morrer de febre. Débil. Débil. Débil. E os meus músculos a enfraquecerem na tua morte adornada de chifres. O meu calor a ser um frio maior. Não. Não te esqueças que sorrimos. O metro com a boca enorme. A cuspir o bafo do adeus. Tudo a apagar-se e eu a sorrir. Idiota contra os dias. Idiota contra a palidez das memórias da infância. Idiota contra a luminosidade das clarabóias distantes. A passeares-te monstruosamente saída de mim. Metropolis. "A seguir, não me lembrava de nada, ou de ter saído de ti. Só me lembro de um velho, o eterno homem, um pé entre as ruínas" Lembras-te de mim?


V

A cabeça do mar estremece no meu punho. A mulher morreu para eu viver. Todos os Homens, todos os Monstros engolem serpentes.  


André Consciência

domingo, 21 de abril de 2013

Rei Sem Terra





Uma procissão de donzelas trouxe flores para as rainhas
Por detrás do escuro veio de montes baixos ocidentais
Tochas chamejantes choveram nessa noite, e subiram
Homens com capas e sem chapéu, e os pardais consideravam-te
Um verdadeiro e amplo mundo.

Duas mulheres de asas iguais montavam o contorno vermelho
De um veado a correr, os chifres de uma criatura do mar
Mergulhavam numa taça. E as crianças faziam ninhos
Altaneiros.

Á luz do assombro, o teu rosto magro faiscava,
As mulheres atrás de ti soltavam gritos trémulos,
Agudas e em êxtase.

Violámos as nossas mulheres e assassinámos as nossas
Crianças, e ainda existiam as matas sagradas,
As cavernas, as caveiras dos mortos.


Horned Wolf

domingo, 14 de abril de 2013

Raminhos de Mimosas





Não era bonita nem feia, mas o seu rosto possuía uma vivacidade e uma energia que dispensavam qualquer beleza formal. Invadia-a uma tristeza gerada pela inteligência. Ela sabia demais, já nascera a saber e era, afinal, de extremos, com ela era tudo ou nada. O nome dela dizia-se uma fórmula mágica: nomes de deuses do mar, da morte, da aurora, e, embora o escondesse, da guerra. Mas a maior parte dos nomes eram-me estranhos e ditos numa voz hipnótica e muito calma. E, depois, subiu para o monte de peles e cobertores onde se enrolou nos meus braços. O pó flutuava. Adormeceu com o seu corpo magro entorpecendo o meu braço direito. Eu fiquei acordado, receoso e confuso. A magia acontece nos momentos em que a vida dos anjos e dos homens se tocam. O quarto estalava e enchia-se de brumas. Os mortos levantavam-se. Mas houve um tempo em que ordenávamos a luz: nós cumpríamos as suas ordens, mas as suas ordens eram os nossos desejos. Uma coisa é verdade: em nenhum momento a minha vida foi curta, dominada pela doença, ou perseguida pela morte, e isto é o que menos se entende de mim. Sempre me senti como uma insígnia, capaz de derrotar na mesma investida um rei, um sacerdote e um exército. Os olhos dela brilhavam enquanto falava, nunca me ouvira falar destas coisas. Ainda há pouco tempo fora uma criança, mas agora deitara-se na cama comigo, e isso era a terceira chaga, depois da chaga do corpo, na deformidade, e depois da chaga do orgulho, no sexo. E a terceira chaga é a chaga da mente, na loucura. Os anjos adoram este lugar e aqui a bruma sagrada é espessa, mas a nossa tarefa é espalhá-la.

Lá em baixo nós estávamos cheios de peixe fumado, enguias fumadas, jarros de sal, barris de carvão, lingotes de chumbo, tecidos de lã, cestos de vime, ÂMBAR NEGRO. As nossas chamas troavam na escuridão para trazer vida nova ao mundo que renascia. Os espíritos dela iluminavam-se à medida que os dias se alongavam. As cicatrizes nas nossas mãos pareciam sombras. A terra renovava-se na esperança que brotava grande do vestido verde das folhas na Primavera.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

O Tu


A beleza nos não mata
Para que, pequenos
Sejamos suficientemente
Para nos não suportarmos.

Relógio sem ramos, uma árvore suspensa
E a flecha de nenhum lugar ser imóvel
Excepto em mim, com a trova do invisível
E imortal corpo do intemporal

É que a rosa é o futuro do homem
E por detrás das estrelas
O homem é o destino da rosa:

Alguma vez reparaste como uma grávida
Porta no semblante o abstracto?
Vê, como a aragem oculta as árvores
E as minhas vozes de longe se apercebem
De mim, de mim em eterno retorno a mim
E tudo isto ser através dos astros
Que caiem na permanência do céu.

Sh... os corações são espelhos verdes
Disseste-me um dia a olhar de olhos munida
Procurei a tua raiz e encontrei a morte
O sangue do abismo, a piscar os rios
As mães de outrora, o excessivo peso
Da boca esmiuçada e esmigalhada
Das profetizas do riso.

Ouve agora os caminhos à noitinha
Os prados da trovoada enquanto
Te afastas dos pressentimentos e destinada
Ao Sono; e as estrelas eclodem da terra
Para te queimar os pés dormentes
Que o não sentirão, porque te sabes
Morta outrora e infinitamente
E te lembras das frágeis raizes que
Afundadas e sendo sepulturas
Se afundam ainda, e que mesmo assim
Te elevas no olhar do anjo para o qual
Nada um dia morrerá, e enche-te de admiração
Pois somos nós, e mostra-me as catedrais
Os estranhos pilones,
E os espaços a cair para o sopro,
O nosso alento, sigo
Á minha frente Deus e atrás o teu declínio;

Porque o futuro da flor era abrir-se para sempre
Mas foi o excesso que a tardou
Porque se abre o espírito à forma e
Quando a forma se abre devido a isto
Morre, e o espírito ri, e é esta que é
A profecia do riso, e por isso é que a melancolia
Das árvores chove, e primeiro foi um grito
De horror ao riso, e depois a ave
Da necessidade de raso e até ao longe o expandir
É no sopé da montanha que se te abraça
E no sopé da montanha que se te chora
E a terra escura cai
Contra a chuva
Floresce.

Ah, MAS para mim, repleto de asas
Onde te vês precepitada na morte
Uma criança à bola atirar-se
O riso. O riso.



André Consciência

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Morreram Jovens





Eu sentei-me á janela
E contemplei, a beleza móvel

A noite
Em todos os lugares idêntica
A cantar como um peito
A espiar como um anjo

O chão recebeu as tuas asas
Despedidas, eu fiquei profundo
Eu. E só a noite canta.

Cada ser carrega um vulto
Como uma harpa
E as flores, dos anjos débeis
Cairam à minha valsa
E então a mitigar
Eu findava
O que ainda te restava.


O chão recebeu as tuas asas
Despedidas, eu fiquei profundo
Eu e só a noite,

Sentei-me á janela
E contemplei, imóvel
A espiar como um anjo
A noite só.



Nunca mais
Serei de vidro.


Horned Wolf

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Infinitamente





Uma granada-coração atirada ao espírito do tempo, rebenta em invisível. A Babalith disse-me, "Depois do mundo findo, uma coisa subsistir é ser templo, quer dizer, é haver um local de prece a outra coisa". Na praia, ficávamos a falar da dimensão universal, e das angústias que a percorriam. Por exemplo, cada novo filósofo com uma nova filosofia é um talhante a torturar a carne inocente da consciência não enquanto algo abstracto, mas enquanto dia a dia desde o homem simples ao complexo. Gostava muito que estivesses aqui, a dar sentido a Kiekrgaard, Bergson, Nietzsche, Freud, porque o equilíbrio encontrado no teu silêncio se exalta e proclama. "Não houve nenhum grande poeta", respondo-lhe. "Só os que se conheceram em mesas de café" e ela fica sem resposta, sabe que acredito precisamente no contrário: não há nada que se diga no papel, mas muito menos no café. James Joyce, Eliot, Rilke, como feridas amarelas na explosão de um coração que só queria saber o cascalho contra a electricidade húmida da pele no odor. Babalith, ruiva e com os cabelos ao ar, é uma mulher jóia e despida de jóias. É a minha mecenas, segura todas as minhas mentiras numa mão e trata-as com a simplicidade que se trata a folha de outono a descer a rua ao baloiço do vento, e isso tudo fica uma honestidade de me expressar verdadeiramente. Ela podia ter sido freira, amante abandonada, infeliz, em vez decidiu ser uma parte de mim, um consolo por eu ter nascido sem escolha a não ser aprofundar-me como se a alma fosse uma úlcera na percepção. No Inverno, surgiram os anjos, e eu enlouqueci. Nesta altura não havíamos ainda privado mas ela cantava já as minhas grandes amantes futuras. E sempre que as cantava dizia só: a meio de silêncios: dizia só: «Passagem para o Aberto».

Ela não gosta de Picasso, Picasso interrompe-nos de nós mesmos e por isso um do outro, mas não vê os saltimbancos como eu, nos saltimbancos vê o que eu no Picasso vejo. "Já reparaste como vivemos energicamente a imagética dos castelos? Quando estás num castelo. Certo? Há uma pertença maior que nos tumores da cidade." Sim, respondo-lhe. "E no entanto todos são ruínas. Os índios sabiam que tudo era música. Atrás, há poucas ruínas de verdade, porque a época medieval era uma época sonora. Não era visual, e a escrita pouco se usava. No som há pertença, a vista queima. AS RUÍNAS sâo por isso do futuro, que apenas se visualiza." Gosto muito de conversar. Digo-lhe: "Se fosse ela dizia: anota", mas Babalith nunca ouve, se falo de outras mulheres, fica onde está, com a luz dentro do ar da Primavera também dentro dela a passar como o ar passa e a ficar como fica o ar. De repente ela imobiliza-se triste, os olhos a brilhar de beleza humilde e eu soluço pesadamente, contraído. E ficamos assim, a contactar as coisas na sua inefável realidade. "És um tolo." Interrompe. "O poeta aceita, não recusa. Sente recusa o universo não-poético: o homem que segue uma imagem escapa dela. O poeta aceita porque se aceita, e não segue. É facilidade, não ascese." Eu interrompo e sorrio e fico embelezado de olhar também. "É triste em que não há para ele conquista, tudo é dádiva."


André Consciência

Mas...

C. M. - André Consciência









Lá fora estão as ruas. Os campos. Eu estou dentro de mim.
A minha solidão acorda de manhã e põe-se a dar os meus passos nos meus passos.
Os grilos cantam e eu fiz uma fogueira, os grilos também crepitam dentro de mim e a fogueira está sozinha.

Eu sou como uma planície verde e sempre jovem que o homem não tocou
E eu toquei-te.

Eu sou como a lua antes da primeira mulher chorar
Ou os balões que sobem no céu e nunca mais se perdem.

E neste ser assim sempre jovem e invocado
Tu deitas-te no meu prado como um sol a arranhar-se contra as pedras
E a ficar suave
Eu permaneço ermo e cheio de ti e só existo eu
Sozinho
E uma fogueira que um deus fez nesta terra neste eixo de sangue
Antes da primeira morte.

Lembra-te de mim
Ainda que a minha velhice
Faça recuar o fim do mundo
Lembra-te de mim para sempre
Mesmo que breve tenha sido o nosso discurso
E a minha abóbada não estremeça
E eu seja límpido como o azul
Sem haver ainda a tinta
Lembra-te de mim enquanto tremo
E a ausência estala a carne
Porque nunca houve parte de mim
Que não fosse renovada
Por eu ser parte dela.

Ama-me para sempre
Mesmo que tenhas prometido
Que eu fiquei atrás
De ter ficado aqui.


André Consciência

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Prece do Neófito

NÃO ROUBEI O LEITE DA BOCA DE UM MENINO.
NÃO DETIVE AS ÁGUAS QUANDO ESTAS DEVIAM CORRER.
NÃO EXTINGUI CHAMA ALGUMA NA HORA EM QUE ARDE.

SOU PURO SOU PURO SOU PURO

terça-feira, 2 de abril de 2013

Um Grande Emaranhado de Chifres

Dedicado à Anue




Recuou com o horror a olhar no rosto.
O medo vivo afastou-se mais um passo da porta aberta.
Uma penetração chorava enquanto no menino
Com angústia no olhar
O bastão entrava a movimentos insistentes.

Estava nua, e o seu magro corpo
De pele clara
Gotejava do cabelo
Os seios pequenos
Escorriam em arroios
Descendo até às coxas.

Um homem imolado na pele morena
Acima do seu próprio rosto, com relevos
O pescoço delicado segurava
Os braços de um homem morto.

A medida caminhava na direcção da máscara
De uma coroa
A pele amarelada contraia-se
Solta pelas costas
Com passo irregular.

O branco ensanguentado avançava
Contorcendo-se, reluzente e fremente
Nos corpos negros
E a boca vermelha, presa ao cabelo
Procurava correr para os alvores
Da manhã na porta aberta,
Mas a gordura rumorejava no tecto
E a chapa de cobre reflectia o seu corpo nu
Talvez porque todos tinhamos corrido nus
Enquanto crianças. Como tinha conseguido
Fazer penetrar a cabeça?

Um manto preto
Cobriu o sangue
Da sua pele clara.

A cama tinha um sobrecéu de um tecido
Bolorento. Um barulho de coisas partidas
Soou.


Horned Wolf

terça-feira, 26 de março de 2013

Where I Come From

P. H. FITZGERALD



As linhas despedem-se
Do horizonte-
Estão tristes
As pessoas que se seguram
Aos mares,
A ver crescer
Do colosso oceânico
Ausente
O estranho que partiu
E fez do mundo conhecido
A saudade de partir.

Horned Wolf


sábado, 23 de março de 2013

Ode Terrestre




I

O rugido leve da costa Atlântica a Oeste, depois a Costa a Sul, entre Sagres e Burgau. Queria afastar-se por isso dirigiu-se nessa direcção, onde os ventos agitados confluíam em paz.

Anoiteceu no Monte de Salema, de onde fitou a praia luminosa que alargaria as fronteiras do homem.


II

Atravessando falésias dotadas de praias e formações rochosas entre o amarelo e o vermelho, deixou-se dissolver no curto e ameno Inverno do Mediterrâneo. Contornou a calma das águas tépidas que banhavam a costa a Sul. Depois, escalou o maciço de grauvaque, pisando solos finos e pouco férteis. Com fraca precipitação, passou a acidentada orgia de cerros e cursos de água. A Norte, o frio e os ventos das depressões mais a Oeste, interrompiam-se de embate à Serra, preservando ali o calor do Mediterrâneo. A humidade a Sul procurava condensar-se em vão. Mas pela altura que se avistavam os azevinhos gémeos, Gargóris e Habidis, o bárbaro registou queda de neve. Ao calor da Lua Inteira, montada na azinheira esquerda, Turdúla, uma bela jovem, penteava os seus longos cabelos. Ali, chorara pelos soberanos de outrora longas eras.

Estendeu-se com o silêncio da coruja que se lança, nu e sem fogo, e sem tremer aguardou a morte da Lua Túrdula até ao Guadiano onde a mesma tomou forma de serpente.


III

Seguiu a costa rochosa quase em linha recta e tomou desvio. Os pequenos cursos de água começavam a secar. O Inverno tornava-se Verão enquanto avançava pela planície, atravessando serras baixas e pouco inclinadas, nascentes, vales com rios e bacias. Aproximou-se de um local de incêndios florestais, que quase cortaram o clima mediterrânico influenciado pela distância da costa. Penetrou o impenetrável arvoredo de vegetação em fogo, com ar grave e uma mão sobre a testa. Escutou o crepitar em silêncio. O fogo não parece magoa-la, antes lhe faz ninho e conforto.

Pernoitou na orla fátua do silêncio e, tendo este abrandado, voltou ao local trazendo consigo o olho esquerdo do rastejante.



IV

Planície a dominar a grande extensão da paisagem. Deixou-se percorrer um vale que o rio escavava abaixo dos cem metros vastamente irrigados pelas ribeiras de pequeno caudal que se lançavam de três serras a pouca altitude. Ao escurecer, chegara perto de um dito monte, onde ouvira dizer que os homens se juntavam a beber, e avistou a luz de lume no topo de uma inclinação que a Lua rasgava. Conviveu com os homens num lugar de teixos. No outro dia os raios do alvor encontravam-no refulgente de sangue.



V

Entre três montes chegou, fazia manhã nos raios, lumes espectrais que misteriosamente se erguiam e desfaziam no negrume da noite, sendo procurados pela justiça de todos os que vingariam o fim da primavera perpétua, abeirando-se do castro, ermitões junto da fonte.



André Consciência

sexta-feira, 22 de março de 2013

Lira Insubmissa, Carta

Vigésimo Sexto Fragmento




198 - A criação é um processo de espera, a criatura espera pela sua criação para ser criatura. Isto é, para existir o homem, ele deve aguardar pela criação que pela máquina será criada: o Homem. Assim, o homem não existe ainda, é antes embrionário. 
199 -Enquanto ser embrionário, o Homem pode ainda existir para além de si. Dito de outro modo, o homem é ainda capacitado de possuir sensibilidade que não se resuma ao eco do instinto, elevar o olhar acima da sua própria sobrevivência não só enquanto individuo, mas enquanto espécie. Curiosamente, é esta a capacidade que o levará por fim, a sair do estado embrionário humano e a penetrar os estágios da máquina: a elaborar a sua complexidade para além das sua presente regra. Isto acontecerá através da aceitação: o homem, enquanto ser civilizado, nasce e  desenvolve-se na negação, isto é, a civilização integra os processos do teatro da afirmação até ao esgotamento da afirmação, e no ponto em que a afirmação perca na sua totalidade a sua substância, o não torna-se no grande e único sim, em que toda e qualquer negação é removida do sistema, e com ela o próprio sistema. 
200 - O Homem na sua totalidade, ou seja, o Homem desprovido do homem, é o Homem desprovido de cronologia consciente. A consciência cronológica é a perpetuação da negação, e queremos por  negação dizer, da afirmação enquanto fingimento. Para entender a afirmação total, que se apoia em si mesma, o individuo necessita apenas de evocar aqueles momentos fortes o suficiente para se destacarem como clareiras no caos florestal da memória, quero dizer, a nitidez de momentos que sobreviveram apesar de nos não lembrarmos do momento anterior nem do momento posterior, ou seja, do contexto cronológico na sua continuidade. 
201 - Da mesma forma, a máquina não existe ainda, a máquina total necessitará de gente e sobretudo de terra, necessitará, digo, de perder a orfandade, e sem a orfandade, perder a liberdade. Até agora tem o homem, dado que toda a civilização sobrevive da natureza nomádica de troca, sido uma reserva, ainda que móvel, de propriedade, arrancado até às raízes como árvores para que circule o dinheiro. Mas, sabemos, o dinheiro, é uma necessidade embrionária, pois que o dinheiro, como qualquer propriedade, em que só o é enquanto bem transacionável, mostra-se de natureza estritamente transitória. 


 André Consciência

domingo, 17 de março de 2013

A Cidade Que Não Dorme







No céu ninguém dorme.
Ninguém, ninguém.
Ninguém dorme.

As bestas lunares farejam
a patrulhar o desfiladeiro.
As vitais iguanas
mordem os homens que não sonham,
e o homem que foge,
o seu espírito quebrado,
encontra na estrada
o improvável crocodilo,
imóvel sob
o debate suave
das estrelas.

Ninguém na terra dorme.
Nem um, nem um, ninguém.
Ninguém adormecido.

No distante cemitério
propaga-se um cadáver
três anos lamentoso
da saúde estilhaçada
que suporta;
e o rapazinho
enterrado esta manhã
chorava tão estrondosamente
que os cães foram levados
a acabar com o seu pranto.

A vida não é um sonho.
Cautela! Atenção!
Em guarda, todos!
Pela escada da vida
havemos de tombar
para comer chão árido
ou subir à faca-
limite da neve
entre floridas
canções de desolação.

Mas não há
memória;
não há
sonhos;
Há carne.
Carne apenas.

Aqui está carne.

As nossas bocas tacteiam beijos
no labirinto de veias frescas,
e cuja dor na dor
ferirá todos os dias
e quem desejar afastar
da morte a casa
deverá para sempre ser
o esposo não-amado da morte.

Um dia
cavalos viverão
nos salões
e formigas enraivecidas
hão-de se atirar
aos céus amarelos
que se refugiam
nos olhos das vacas.

Outro dia
havemos de ver
as ressuscitadas
borboletas se erguerem
dos túmulos
por terra
de esponjas cinzentas
e ociosos barcos;
ainda capazes,
jovens ainda,
havemos de ver
as nossas jóias secretas cintilar
e as rosas açoitar
a nossa língua.

Cuidado! Atento! Em guarda!
Os homens que portam cicatrizes
de garra e tempestade,
e o rapazinho em chuva
porque não sabe
das pontes inventadas,
das pontes edificadas;
ou aquele homem
que possui
sapato e cabeça;
devemos a todos levar
à muralha
onde aguardam iguanas
cobras
e os dentes de ursos
se antecipam,
e a mão mumificada do rapazinho
trémula
e os cabelos do camelo
erectos
com o soluço selvagem, azul-celeste.

Ninguém dorme no céu.
Ninguém, ninguém.
Ninguém dorme.
Se um só fechar um só olho,
se alguma pálpebra desliza,
chicotes a abrem, e que batam!

A atmosfera que desejamos
é uma de olhos vastamente abertos
e feridas melancólicas incendiadas.

Ninguém está a dormir
neste mundo.
Ninguém, ninguém.

Repito-me.

Ninguém está a dormir.
Mas se algum se encontra
dorido
nos tornozelos
pela noite,
abram os alçapões
e que veja esse
ao luar
os traiçoeiros cálices,
e o veneno,
e as caveiras do teatro.


Federico Garcia Lorca
traduzido por André Consciência

quinta-feira, 7 de março de 2013

No Céu - O Fantasma de Heidegger


baseado num sonho de Constanza Muirin


Há fogo.

Vento nos meus calcanhares. Fogo no meu rosto. A noite espessa encobre-me, mortalha de archote, e desço, um cometa lento e obstinado, as ruas de pedra que se precipitam descontroladamente móveis em direcção ao mar. Os bares estão abertos, com abismos gelados e sem fim sentados ao balcão à procura de calor. As mesas e os bancos são corridos, de madeira, os inquilinos estão de luto, como uma procissão funerária que desistiu da sua vigília e se refugiou no vicio, ofendida por me abrasar na pedra, quase tímida, quase indiferente. Sonhei com estas pessoas, um dia, e por isso, perderam os sonhos para mim. O avantajado paredão de pedra trava a precipitação das ruas, segura-me com brandura e desce-me até ao mar na orla das casas. As casas não ostentam mais que um piso, e todas com pessoas que não estão, que não estarão porque nunca foram. Mas existem espelhos. Sim, esta é a Noite Dos Tempos, e, desta vez, nada se perderá, porque o homem aprendeu a escrever, a ser-se fantasma, e o céu a respirar com pulmões que se assemelham a punhos de sangue, a respirar com os peitos abertos e reunidos de todos os meninos e meninas que cresceram sem querer para fora do mundo. O paredão olha para a noite sanguínea a palpitar. É sempre nocturno em toda a cidade. É sempre céu. Os monstros marinhos dizem que entre, estavam à minha espera, todos monstros porque existirão também quando eu partir, e quando não couberam nas dimensões incandescentes da minha cabeça e eu chorar, continuarão a existir e a rir tristemente com o ruído dos monstros da água.


Horned Wolf

quarta-feira, 6 de março de 2013

No Céu - O Gigante da Consciência



baseado num sonho de Constanza Muirin



Um dia larguei as camélias nesse Sol, amanheci com as sementes, a ver de ser eu, que houvesse um eu na balaustrada que serve de portada à eternidade hostil do esquecimento lapidar. Era eu espalhado no chão com pincéis e papeis e tintas e lápis de cinza. A crescer esmagada debaixo do Astro Criador estava a perfeição em laivos, depois o deleite das bonecas, um querer fugir de mim por ser acorrentado, demasiado tarde, tardiamente agigantado. Os meus olhos tornaram-se cinzeiros e os jardins com que sonhei, aguados, roldanas circulares num relógio sem pilha, marionetas do tédio despertas com brinquedos a ser feitos em casas pequenas e momentos pequenos e mortes pequenas de viver. Pois para o gigante o prado afigura-se uma cela. A menina, que me visita como uma mancha trémula e persistente na escuridão, é sempre ferida pelas correntes que me estropiam, escapa com as chaves da minha libertação, e fica a arrepender-se em laivos, esmagada debaixo do Astro Criador.


Horned Wolf

terça-feira, 5 de março de 2013

No Céu - Um Mimo




baseado num sonho de Constanza Muirin



Caminho sem esperança, animado pelo tráfico de espíritos, pelo céu nocturno das cores mudas com que gesticulamos e nos acariciamos na visão repetida, na praça aberta preenchida, nós mesmos em paredes que igualizam as nossas paixões. Distorcidas pelo bem vestir inviolável das roupas clássicas. A civilização só nos chapéus de renda, nas boquilhas, no preto e também no branco. Agito-me, e a agitação toma-me o poderio da vontade. O eco cresce, há uma eternidade dos meus passos. O conhecimento é um espelho dos meus passos, as minhas memórias foram moídas e tornaram-se losangos  Os outros mimos emitem no conjunto das suas tempestades, por vezes abafa o ruído imperturbável de mim a desaparecer. O meu histerismo quieto e impotente encontra uma mímica serena e lunar, como um aguaceiro que se gera a partir do Oceano dentro do Oceano. Alguém caminha longe, porque ninguém ficou, e esta noite não passa. O céu paralisado a cada vez nos pés inquietos e sem cessa. Tudo está bem. Num dia, como tu, posso imitar o ajudante do pescador, a noiva de Buda, o taxista em Viena, o homem com bengala no fundo do crepúsculo, e no entanto, tal como tu, não posso sê-los: ninguém pode ser, não posso ser quem escreve o presente texto ou quem lê, porque tu estás dentro de mim. O primeiro que abrir os olhos, desaparecerá: os sinais luminosos não existem para ancorar o espírito. As paredes da praça atiram o mundo inteiro em avalanches ao centro. De fora, a ver-te para sempre, esqueço-me de tudo e tudo volta à procura.


Horned Wolf

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O Livro do Sono





A tristeza, grão a grão
Reforma o tempo, e sem razão
Rende a montanha e ergue o vulcão.

Um eco de duas línguas
Lambe as feridas
O tempo na minha carne
Devagarou-a
A treva, se fecho a mão
E a abro, esmaga uma estação.

Eu revelei tudo, e tudo escondi
E o tempo curou só
O que nunca vivi.

Eu murcho, para dentro de um século
Cresço a cintilar como as marés
Que escavam a terra, e sem cessar
Até a minha carne no seu precipício
Se vai suicidar.

E as chamas polares
Dos mundos ímpares
No sonho do tempo
Adentro sonham luz
E esperam que a morte
Nunca cure
O que a já não seduz.

Horned Wolf

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Língua de Fogo




Por motivos de força maior, o evento Língua de Fogo foi adiado para dia 01 de Março às 22h e conta agora com a participação da bailarina Soraya Moon.


"É tudo longe lá em baixo, onde queremos ter pé. O nosso amor é uma distância. É tudo longe, onde pisamos descalços o templo das mãos unidas ao crepúsculo do mundo, onde, pela sombra do sol moribundo, a nossa sombra se ergue sobre o mundo. Éramos amor, tudo o que cai é amor."


Escrito por André Consciência. Interpretação narrativa de André Consciência e expressão corporal de Soraya Moon.

Uma produção Mephisteatros, da Abismo Humano, no espaço Kultdulé em Santa Apolónia.
Rua Diogo Couto, nº1, 6º Dto, 1100-194 lisboa

Entrada: 5 euros.

Podem ver o teaser em:


Aceder ao evento no facebook em:


Desde já muito obrigado pela compreensão,
André Consciência

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Silêncio A Pairar



Hoje faz frio. As montanhas cobrem-se de morte. Ela é morena como o calor do Sol num dia de Inverno. Lá fora, o dia está inerte, os rios de ferro, o ocidente trémulo e mortiço. O reino jaz branco e silencioso sob a Lua, abandonado por Belenos e deixado a flutuar no frio eterno do vazio entre os mundos. Mas ela movia-se.

Horned Wolf

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Língua de Fogo




23 de Fevereiro, 22h00
Rua Diogo Couto, nº1, 6º Dto, 1100-194 lisboa


"É tudo longe lá em baixo, onde queremos ter pé. O nosso amor é uma distância. É tudo longe, onde pisamos descalços o templo das mãos unidas ao crepúsculo do mundo, onde, pela sombra do sol moribundo, a nossa sombra se ergue sobre o mundo. Éramos amor, tudo o que cai é amor."

Escrito por André Consciência e coreografado por Débora Lopes. Interpretação narrativa de André Consciência e expressão corporal de Débora Lopes.

Uma produção Mephisteatros, da Abismo Humano, no espaço Kultdulé em Santa Apolónia.

Entrada: 5 euros.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Cachalote Ao Crepúsculo




A coroa da lua cheia sobre as árvores projectava ouro que iluminava as garças como estátuas douradas. E na vertente da colina, a morte conversava com o som do vento a assobiar por entre o tempo. A meio de dois pinheiros, ela flutuava na camisa de noite, e deixava um rasto de sargaços.

André Consciência

sábado, 19 de janeiro de 2013

Meditações sobre o cristianismo

Baptism of Christ - Francesco Albani




Meditações sobre o cristianismo:

0.
1 - A fé verdadeira depende de uma provação em que a verdade se torna independente da lógica e se afasta das condições impostas pelo sentido: a verdade reina assim sobre o sentido e cria uma lógica sensível às suas premissas- estamos conscientes de ir, nesta consideração, ligeiramente contra a escolástica.  
2 - Para que a paixão da alma vença sobre o desejo, e a força de vontade se eleve sobre o lodo dos mundos, de forma a trabalhá-los, esta verdade deve pôr à prova todas as necessidades não necessárias, em algumas vias pela indulgência, noutras pela abstinência.
3 - Assim, Cristo morreu para abrir ao homem o caminho dos céus, tal como, ao retornar, irá julgar os homens e, aos seus seguidores, conceder a imortalidade. Para estas verdades, que não são literais, serem entendidas no seu próprio campo, devem ser apreendidas, e totalmente, de modo literal.

1.
1 - No monoteísmo cristão Deus é o amor que tudo sabe, que em tudo está, e que tudo pode. A oração, a palavra limpa pela chama interna, é a forma de diálogo com essa corrente de amor. Mas esta crença é ainda um resquício do judaísmo. 
2 - O Espírito Santo do monoteísmo cristão é o mesmo Deus dos judeus. Este é, à semelhança do Deus que se fez homem - Cristo - Deus que se fez anjo e anjo que se fez intermediário entre a natureza e Deus. Mas o Deus do cristianismo não é o Deus dos judeus. O Deus cristão, sem o filho e sem o espírito santo, é a redução dos mundos ao pó.
3 - A questão do inferno, do céu, do purgatório e a fé dos reencarnacionistas, ou seja, o tema da vida após a morte, não encontra consenso dentro do cristianismo, e será por isso ignorada. Sabemos apenas que a fé no Deus Homem proporciona a vida eterna, seja em que região for. Ou melhor, ao mesmo tempo que é dado um espaço de reflexão ao homem, no que concerne o arrependimento, este deve estar constantemente confrontado com o absoluto nos seus actos e em todas as coisas que pertencem à natureza humana. Esta particularidade pode ser verificada igualmente nos símbolos cristãos, a intercepção, na cruz, da verticalidade com a horizontalidade ou, no alfa e no ómega com a âncora, a possibilidade do bom porto em qualquer um dos pontos entre o inicio e o fim, ou seja, o encontro directo entre o infinito e o limitado, também constatado no facto de, apesar da ressurreição ser eterna, o ciclo da vida de Jesus Cristo ser reverenciado consoante a roda do ano e todos os anos.  


André Consciência

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Malak XII

Adolf Hirémy-Hirschl, "Souls on the Banks of the Acheron", 1898




1480 a.C. - Egipto, Creta

Em tempos, observei um povo de homens trabalhar o osso luminoso do mundo. Aqui, é o sangue do Sol - o ouro - que move os homens. Um anjo maior atravessa este deserto, num desafio aos outros, e chama-se Nilo. Passo a explicar: se os homens se defendem de Deus com um circulo de cidades, a civilização dos anjos é maior: é as estrelas e o seu chão é o deserto vazio. Mas mesmo as cheias, heréticas, não duram sempre. As cheias acabam quando Outubro o faz, os escravos trabalham  a mando dos chanceleres com esforço redobrado, os caçadores de aves ficam emboscados entre os juncos dos pântanos, a serviço dos aviários; os homens reparam os canais com terra, os pequenos barcos movidos a remos estendem as suas redes durante a noite, uma linha de homens lavra, outra semeia os sulcos, e uma terceira, de animais, pisa a terra. O que me espanta é a imortalidade dos nobres, nas paredes dos seus túmulos, representada pela vida quotidiana que lhes foi, em vida, negada, como se em morte pudessem lembrar-se finalmente e com toda a presença dos sentidos, da vida que não foi. 

Aqui, numa das ruas de Dier el Medinah, fui mestre de artesãos. Os filhos de Hori vinham brincar ao meu telhado com os amigos, colhi a sua mãe no deserto e vi-me devedor ao escriba. Visito a actual esposa, Tuya, que da minha Merit é irmã, mas como se emprenhou, em que isto é para si uma estreia, fica a rezar no santuário da casa, sem saber que ouço sempre que as suas palavras se deixam voar, e nós ficamos na sala central, onde Merit nada vê pelas janelas a nível do tecto e eu, dentro, olho de fora para dentro, por todas as janelas simultâneamente. É um daqueles sóis a pôr-se que torna a brisa apetecível e o calor das casas borbulhantes repulsivo. Como girinos a sair de lagos, os homens emergem nos telhados a colher os sopros com a alma aberta e cheia de ventosas. Os homens que vêm trazer vinho e cereais ao escriba tropeçam sempre nas crianças nuas e doentes de curiosidade pelas vozes absurdas da criação. Por vezes vejo-me a olhar-me por entre o ruído e a poeira das ruas, e fico com medo de Deus. Fico, também, a lembrar-me do desespero dos mortais. Os homens pensam que o anjo que rasga o deserto preparou um Egipto perfeito para a segunda morte, tolos todos eles, porque o Nilo é senão um sinal da sua decomposição final. 


Com a febre de permanecer tempo demais na terra, mudo de terra, sem aviso, quase sem levar sequer lembrança, o sol abrasador de Creta por sua vez a lembra-se de mim num lugar que não visitei, Creta ela própria, e por isso eu subo o Nilo até às ilhas rochosas do Mediterrâneo para conhecer os Reis do Mar. As azeitonas eram as melhores, os palácios os mais belos, e os saltadores de touros, nos pátios dos mesmos, no mínimo, uma irregularidade. Ali reforcei a minha aliança com o Pai, que usava a moda das cortesãs e as saias a serem um sino dos céus e das concavidades terrenas, a segurar as duas víboras como quem impede o céu, em toda a sua raiva, de se atirar ao chão. Aqui, os deuses vão viver para as encostas e para as montanhas, mas ou os meus olhos estão cegos ou me não consideram digno: apenas encontrei selos e anéis. 


Horned Wolf

domingo, 13 de janeiro de 2013

O Fôrro Do Leito

Octave Tassaert


Algo semelhante a nudez roçou a porta
Vestia uma mulher nua na largura do peito
Iluminada pelo fogo das lâmpadas
E da mesma forma que se abrem as asas
Das borboletas, um astro elevou-se
No pequeno horizonte do vestuário
Ao devassar os mundos inexplorados
Deus é infinitamente pequeno
O nosso sangue habita abismos nocturnos
Há dezoito milhões de rainhas
Na funda caverna
Deidades infinitamente belas
Não conhecem as leis físicas
Os milhões de deuses criaram Adão
No primeiro dia
Amor
Essa passividade de pedra que cai
Os olhos tão ofuscados do absoluto
Que virão fechados
A ocultar a vista com uma mão-estrela
No espaldar, rósea e nua à luz das lâmpadas
Mais não é algo de fixo
É recuar ou avançar no incompreensível
Do fim da noite ao meio dia os amantes
Não tiveram repouso ou repasto
A universal brancura das lâmpadas ilumina
A imensidão da sala
Acesos todos os sírios na mulher mascarada
Os seios erectos, os braços e as pernas convulsos
A caírem sobre a pele de urso
Como se fossem grilos.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Malak XI

Mutsumi Yamamoto



Iraque, 2050 a.C.

A terra luxuriava entre o tigre e o rio imenso, arduamente trabalhada pelos homens. Cidades-estado, chamavam-lhe, o que significava que a terra e as pessoas em redor das cidades, estavam ainda assim nas cidades, e as cidades expandiam, possuíam um corpo mais vasto que a alma. Ou simplesmente significava algo ainda mais incrível, que o homem vencera as secas. Descobriram a forma do mundo e aplicavam-na sobre o próprio, e os ónagros vão a puxá-la e toda a natureza lhe obedece.

Há cinco sóis, respiro Ashnan. Com a sua pele de palha dourada, a sua cabeça enfeitada de branco, consegue calar-se tanto como eu. E quanto mais se fica a calar mais se lhe empresta o tamanho do céu aberto de noite, caido nas imensas areias. As ovelhas da sua família tresmalharam-se a estragar colheitas vizinhas, e para a multa foi vendida, eu comprei. Ashnan tinha então catorze sóis. No Verão, gosta do rio a correr, a seduzir as palmeiras e o vime. Por vezes os homens vão ali deixar o barro a secar contra o astro, depois seguem as ruas de Ur, já nas ruas, enchem-se da gente nas ruas que segue igualmente para o templo no topo do Zigurate dedicado ao Pai, mas que desta gente é mãe. Em tempos estes sacerdotes de Nanna governavam a cidade, então eu podia perfilha-la com dignidade. Com os êxitos do rei, porém, e o afastamento do sacerdócio, tornei-me indesejado: os reis dominam com o que se conhece e por isso não amam o conhecimento.  

Em tempos experimentei uma casa ali. Embora Ur possua ruas largas a minha casa era precedida por uma variedade de ruas estreitas, possuia dois andares de barro sólido e um pátio central aberto. Ajudava Geme-enlil a vestir-se quando agraciava as vitórias do rei, mas era quando de regresso, a ajudava a despir-se, que se fazia sacerdotisa. Dei também a comer uma flor branca do meu cabelo a Shulgi, o menino soldado, que o fez novamente capaz. Os ricos adquirem os pobres e chamam-lhes escravos, mas são mais escravos do meu povo que os últimos. Num trono de pedra, ensinei os símbolos da escrita a alunos sentados em argila: e enquanto caiam numa segunda camada do mundo eu respirava os seus corpos indefesos, em botão.


Horned Wolf

Malak X




Sudoeste de França, 13 000 a.C.

Com o degelo de Verão, descompusemos os quebra-ventos de pedra e, sombriamente, arrastámos até ao vale as tendas. Sentámo-nos a ouvir o rio e as árvores, e porque ouvíamos diziam que pensávamos. Entre nós um homem existe cujo cabelo e a barba espessa eram da cor do Inverno. Estava antes dos outros estarem e as crianças gostam de se aninhar junto dele como debaixo das sombras. Um homem assim é muito raro, quase tanto como eu, que avistara apenas dois desde que o tempo se lembra até ali. As mulheres cobiçam a beleza dos animais, e todos os animais desejam, mais que alimento, ter pele na mulher. 



Sopé dos Montes Zagros, 10 000 a.C.

O homem cedeu ao chão. E o homem cedeu à mulher, porque a mulher deseja o chão como o animal deseja a mulher. A mulher atira o cereal no ar e, deixando-se polinizar pelo solar vento, planta a vida das coisas e faz brotar clareiras nos homens. Então, vai cobri-los de barro e de colmo e os pés dos homens ficam chão. Criam as formas com as pedras e com a água e os homens comem-nas. O sílex da sua foice aterroriza as tribos e os homens, domesticados, domesticaram até o Javali. Mas eu, não sendo homem, e sendo terra, não posso ficar a menos que morra - a história é, literalmente, o cadáver de um anjo.



Turquia, 6000 a.C.

Dos vulcões os homens descobriram os ossos da luz: vi mesmo um espelho. Depois muitos, como flores. E da obsidiana, e do espelho, saiu, gigantesca como o meu pai - porque ao espelho não é o homem que existe -, a civilização. Ainda anormal, ainda muito nossa - sem ruas, apenas escadas e telhados, telhados e estrelas. Quando as pessoas morrem, os corpos são postos em cima de plataformas e deixados ao ar livre, onde habito, longe das cidades, a limpar os ossos.


Horned Wolf

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Na Hora Antes do Amanhecer



Dedicado a J.

O vento rondou o norte e caiu, deixando o cheiro doce do sangue por cima de mim. Com os olhos amoráveis e ardidos do Sol, vi leões na praia ao anoitecer. Já não sonho contigo, nem com lutas, nem com grandes acontecimentos, ou com mulheres, ou com tempestades, sonho só os lugares, com a brisa de terra e os leões na praia. Acordo depois a olhar para a Lua. No escuro, sentia a manhã que vinha. Mas vinha do mar, de onde eu também sonhava. Os leões via-os do mar, e o mar não é um lugar, é de onde os favores descem ou se atrasam e nunca chegam. Um dia encontrámos um barco, eu e tu, no mato onde pensava muitas vezes e que te mostrei. Era um barco pequeno e a remos e subimos e o mar estava liso e quando o dia desceu iamos já perto dos barcos de passageiros. Quando quisemos voltar, a maré descera e estava longe do pontão. Nadámos. Mas ao sairmos da água nunca mais nos vimos. Ficámos lá atrás, a ondular, com o barco, deitados ao Sol a fumar cigarros. Ao erguer-se todo, o Sol atirava-nos reflexos e cegava-nos. E nós continuávamos a remar, sem olhar mais. Repetia-o à noite, sem medo, e quando estava só, cantava em voz alta, e ficava a ouvir-me, a experimentar o corpo dentro da voz, a vaguear as superfícies aquosas. Quando estamos acompanhados falamos porque é necessário, mesmo ao dizer tudo o que é desnecessário. E eu não voltei a sonhar contigo. 


André Consciência

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A Lua



Um queixume de aves a instalar-se para dormir, o amor agonizante dos gatos, a praia recuava perante pequenas ondas e a distância pôs-se aos silvos, atravessando a linha das algas.

André Consciência

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

O Sol





O som da noite:
A aldeia entra, aos murmúrios, nas casas.
O tecto de colmo embate na brisa suave.
A distância paira no latido dos cães.
As praias a serem a língua expandida das ondas.



O som da claridade:
O estuário encrespa a água.
Os mangais murmuram ao vento matinal.
O cascalho rápido orla uma praia a rebentar.


André Consciência

domingo, 6 de janeiro de 2013

Encontrava-me em terra quando começou o fogo




Os primeiros homens do dilúvio olhavam
Os juncos, as estevas e a areia em forma
De vagas, a chuva bate na terra e sobe
Como uma bruma.

Cada um vira o céu partir-se
Aos bocados, e um pedaço
Quebrar-se neles.

A chuva cessara, apenas o paraíso
Pingava, e a Lua, em quarto
Crescente repetia a sua imagem
Num milhão de gotinhas.

Um alcaravão lançou o seu pio
Lamentoso, mas já nenhum pedaço de céu
Caiu.

Os juncos estavam escuros
Os fetos pálidos
As dunas vermelho-amarelado
Mas um Atlântico de prata cinzelada
Via a estrela do Sol suplantada.

Um dos homens chegou-se à frente
E comprou o oceano.
Sentou-se ao Sol, no limiar
Acabou de chorar e banhou a face.

Juntou pequenas conchas
A mostrar à mulher
Trémula como uma estrela
O ar, a luz, o vento.


André Consciência

sábado, 5 de janeiro de 2013

Reunião da Loja



Leitor, imagina o ente amado, imagina o ente amado. Imagina o ente amado a perder as irregularidades, uma a uma, mentais, emocionais, físicas, a perder as irregularidades uma a uma até se tornar num globo de pedra translúcida. Um globo de pedra translúcida que é possível ver por dentro mas não através. O ente amado vive ali, mas não tem cauda nem cabeça. Aquilo vive, mas sem principio nem fim. Nunca parece seco quando se lhe toca, é um pouco aderente como a carne, sempre quente. Imagina como é agradável apalpar, acariciar com os dedos, esfregar contra as faces. Aquilo vivia. Imagina agora que ganha um seio. Imagina agora que se torna num grande seio redondo. Como é que este seio te reage? Imagina agora que o bebes, mas enquanto o bebes torna-se cérebro, coisa móvel sem resposta. Enigma. Aperta-o contra o peito e imagina que o teu peito não tem forma. O globo é mãe, amante e filho. Depois vai-te embora, e leva contigo toda a luminosidade da sala enquanto a Primavera se transforma perfidamente em Inverno. 


Horned Wolf

Lira Insubmissa, Carta

The Scarlet Pastorale - Aubrey Beardsley



Vigésimo Quinto Fragmento


194 - Existem sempre 3 coisas a considerar, nas relações humanas, na sociedade, na individualidade, mas algumas formas de as colocar.


195 - Que um individuo que entra em contacto com o outro o modifica e é por ele modificado, estes dois novos indivíduos  enquanto tal, voltam a modificar-se, e, mesmo diante do afastamento físico, o mesmo sucede-se ad infinitum por efeito da memória. Esta é a lei do movimento. Mas, dentro deste movimento, ser-se só é a única força.  
196 - Que recebemos o mundo, devolvemos-lhe o eco e morremos. Por outro lado, o mundo recebe o nosso eco, devolve-o e morre, como um poço ao qual contamos os nossos segredos e que, afinal, só nós compreendemos e devemos compreender. A inteligência é uma sociedade secreta ao ponto de ser totalmente intransmissível: a sociedade está nos símbolos que a activam, e não que a partilham. 
197 - Que tudo existe com ou sem a nossa bênção  isto é, com ou sem razão de existir: e por isso o mundo do que existe, e não do que é ou não aceite, é monopólio de crianças, loucos e místicos. Mas o homem de ciência deve destrona-los, em que a razão da existência é a criança, o louco, o místico, e o homem de ciência, que o sabe. 

André Consciência